Os genomas de cancros de berbigões transmissíveis por contágio têm uma elevada e inesperada instabilidade genómica
As células dos cancros transmissíveis têm a capacidade de se deslocar na água do mar, transmitindo a doença para novos indivíduos.
O genoma destes cancros foi agora sequenciado pela primeira vez em berbigões, tendo revelado novas informações sobre a forma como estes cancros se disseminaram pelas populações ao longo de centenas ou milhares de anos.
O estudo publicado hoje na revista Nature Cancer, realizado por investigadores da Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), do Wellcome Sanger Institute, (Reino Unido) e por colaboradores de 11 países, incluindo Portugal, revelou que estes cancros são geneticamente muito instáveis. Em particular, observou-se que diferentes células cancerosas de um mesmo tumor contêm números de cromossomas muito distintos, variando entre 11 e 354.
Neste novo estudo, os investigadores analisaram o berbigão comum (Cerastoderma edule), um molusco que habita as costas da Europa e do noroeste de África, muito utilizado para alimentação. Estes animais podem apanhar cancros transmissíveis que são disseminados por células cancerígenas vivas, passando de um berbigão para outro através da água do mar. No entanto, estes cancros não são transmissíveis para humanos, estando limitados a berbigões suscetíveis.
Os cancros transmissíveis que infetam os berbigões são designados por neoplasias transmissíveis de bivalves. Estes cancros afetam o sistema imunitário do berbigão, provocando uma doença semelhante à leucemia, que se espalha por todo o corpo e é geralmente letal para o animal infetado. Até à data, foram identificados oito tipos independentes de neoplasias transmissíveis de bivalves, em amêijoas, berbigões e mexilhões.
Este estudo produziu também o primeiro genoma de referência do berbigão, uma etapa importante para investigar a evolução do cancro transmissível nesta espécie.
Os autores recolheram cerca de 7000 berbigões em 36 locais de 11 países, incluindo Portugal, Espanha, Reino Unido, Irlanda e Marrocos. A partir desta coleção, a equipa sequenciou geneticamente 61 tumores de berbigão e conseguiu demonstrar a existência de dois tipos diferentes de neoplasias transmissíveis de bivalves, cujas células podem ser distinguidas pela sua aparência ao microscópio.
Ana Margarida Amaral, coautora e oficial de ligação do nó português do Centro Europeu de Recursos Biológicos Marinhos (EMBRC.PT) do CCMAR, comentou. “A descoberta de neoplasias transmissíveis de bivalves que persistem no mar por séculos ou até milénios serve como testemunho à notável diversidade de formas de vida que podemos encontrar no mar e da sua enorme capacidade adaptação.” A investigadora acrescenta que “este estudo mostra um avanço significativo na compreensão da complexidade das leucemias em bivalves marinhos e destaca a importância das infraestruturas de investigação, como as proporcionadas pelo CCMAR no âmbito do Centro Europeu de Recursos Biológicos Marinhos (EMBRC), que permitiram a recolha das amostras e a concretização deste estudo. O nó português do EMBRC fornece serviços de investigação para universidades, institutos e empresas, permitindo o avanço da ciência e da economia azul.”
Os investigadores esperam que o estudo da forma como a instabilidade genómica é gerida pelas células cancerígenas dos berbigões forneça informações úteis à compreensão do funcionamento deste fenómeno noutras formas de cancro, incluindo as do ser humano.
Publicação:
A.L. Bruzos, M. Santamarina, D Garcia-Souto, et al. (2023). Somatic evolution of marine transmissible leukaemias in the common cockle, Cerastoderma edule. Nature Cancer. DOI: 10.1038/s43018-023-00641-9